Apresentação

A devastação climática  no Rio Grande do Sul traz muitas perdas e impactos nas vidas, nas cidades, nas economias. Ainda não há como medir toda sua extensão e gravidade. Mas, desde os primeiros dias de enchentes, já temos visto que iniciativas comunitárias têm ganhado espaço na cidade e criado importantes formas de articulação social. Um destaque são as cozinhas solidárias. Além de somarem-se ao desafio de alimentar as pessoas desabrigadas, elas vêm atuando como espaços de convergência social. As cozinhas formam redes de sustentação e ações urgentes. Emergem especialmente junto a territórios marginais e precarizados pelo Estado, sendo esses os mais afetados pelas águas e com uma ancestralidade infinita de perdas em diversas dimensões.

A curto prazo, enquanto se estruturam políticas habitacionais de retorno às casas e de reassentamento de moradias, estes espaços de convergência social podem contribuir para a manutenção e fortalecimento de redes comunitárias consolidadas, bem como para a formação de novas. Essas redes, em um contexto de disputas pela reestruturação de espaços devastados e pela conquista de moradia digna e segura, serão especialmente importantes para defender recursos públicos e processos democráticos de consulta às populações impactadas.

As Cozinhas Solidárias, mais do que produzir marmitas, suportam uma “pedagogicidade” pré, durante e após o “fogão”. O que vai na panela são produtos agroecológicos, em sua maioria, oriundos de assentamentos ou da agricultura familiar, ou seja, eles ensinam sobre modos solidários e ecológicos de produzir, sobre a necessária articulação entre cidade e campo, bem como questiona a relação com a comida e os hábitos de consumidores. Por pautarem novas  sensibilidades ecológicas, elas, como afirmam Reis da Silva e Dornelles (2022), ensinam a pensar formas de habitar o mundo. Esse alimento ao chegar nas cozinhas, por sua vez, é preparado, cozido e servido com planejamentos horizontais e coletivos e construção de consensos. Ensina-se, portanto, um modo de organização e de trabalho baseado na colaboração e companheirismo. (Branco, 2020)

Entre uma etapa e outra, e especialmente nos almoços coletivos com todos que trabalharam, “prosas” ou diálogos são fomentados. Esses versam sobre vivências, alegrias e tristezas do desenrolar de vidas, construindo um saber sobre táticas cotidianas do (sobre)viver. Por outro lado, se ensina-aprende sobre saúde e nutrição e sobre conhecimentos tradicionais, como técnicas de plantio, receitas de família e efeitos medicinais de alimentos (Branco, 2020). Na trama dessa sociabilidade, narrativas do trabalho e não-trabalho, do passado e do presente, se entrecruzam, ensinando-aprendendo saberes sobre o ofício das “panelas” e sobre estratégias para lutas futuras do “viver”.

Entendendo que esses espaços físicos e sociais são fundamentais para a reconstrução das vidas em comunidade durante e após a enchente, o Laboratório Encruzilhada (PROPUR/UFRGS), o Margem_Laboratório de Narrativas Urbanas (PROPUR/UFRGS), o Nonada Jornalismo e movimentos sociais desenvolveram um projeto de pesquisa-extensão-ensino dedicado às cozinhas.

O projeto interdisciplinar integra o Programa “Reconstrução e adaptação dos municípios do RS no contexto da crise climática: ações da Faculdade de Arquitetura” da UFRGS e envolve duas etapas: o mapeamento cartográfico e narrativo das cozinhas ligadas a movimentos sociais; e o apoio técnico à sua consolidação como equipamentos urbanos de convergência social. Pretende-se, com isso, vir a compor um conjunto de diretrizes que possam subsidiar o reconhecimento e a efetivação delas como equipamentos urbanos de bairros, capazes de fortalecer redes de vizinhança, lutas pela moradia popular e relações urbano-rurais vinculadas à soberania alimentar.

O Sonário

O Sonário de cozinhas-território busca dar passagens aos testemunhos recolhidos durante o mapeamento narrativo de seis cozinhas vinculadas à movimentos sociais – Cozinha Barracão, viculada ao Levante da Juventude; Cozinha Azenha e do Lami, vinculadas ao Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST/RS); Cozinha Arte&Mãe e Cozinha das Pretas, vinculadas ao Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM/RS); e Cozinha Vida Nova, vinculada ao movimento União Nacional por Moradia Popular (UNMP/RS). Esse mapeamento consiste na promoção de rodas de conversa nos territórios das cozinhas, guiadas por uma pergunta disparadora que pudesse fazer emergir memórias e cotidianos relacionados à experiência e ao saber/fazer que estruturam e garantem a atuação desses lugares como espaços de convergência social. Desde a pergunta: “como você chegou nessa cozinha?”, a maioria dos relatos tramam memórias de vida que caracterizam a desassistência do Estado e que foram ensinando táticas de sobrevivência e resistência.

A roda de conversa com cada cozinha é particular e única, e fica registrada em áudios posteriormente escutados pela equipe multidisciplinar que compõe o projeto. É nessa segunda escuta que recortamos trechos chave da atuação das cozinhas no território, para então retornar às lideranças das cozinhas, que autorizam e validam as experiências que comporão o Sonário como uma plataforma virtual e aberta. A partir desse mapeamento narrativo, já é possível acionar algumas reflexões relacionadas ao papel político e territorial das cozinhas, e ao engendramento desse espaço físico e social como potência na convergência social e comunitária.

Diante dos testemunhos recolhidos nessa experiência de escuta/diálogo, entendemos que  as cozinhas são práticas políticas enraizadas nas necessidades locais, territorializadas, e já legitimadas como lugares de acolhimento e de representação pelas comunidades que atendem. São forças insurgentes, intrínsecas ao caráter inventivo e criador das margens urbanas, que emergem contra o abandono do Estado e que se legitimam à revelia dos poderes instituídos. Observamos que quanto maior a vinculação com cooperativas, associações e movimentos sociais, mais facilidade tem a cozinha de acionar as redes de sociabilidade e de sustentação econômica para seu funcionamento.  

O capital político dos movimentos sociais que dão sustentação às cozinhas é o que as difere quanto aos níveis de condições de trabalho e de alcance social. Como laboratórios de modos solidários de produzir e  fazer cidade, as cozinhas que participaram das rodas de conversa reforçam a importância do papel dos movimentos sociais para suas atuações e para que essa tecnologia social não se subordine aos interesses políticos ligados ao poder econômico.  

Em meio à contação de histórias durante a escuta com as cozinhas, emergem processos de ensino/aprendizagem. Ali, laços comunitários são tecidos no cotidiano e é constituído um espaço social marcado por urgências, “mão-na-massa”, risos e pelo acolhimento das diferenças. A cozinha, lugar por excelência da troca de saberes e das ancestralidades, é encarado pelos grupos de mulheres que estão à sua frente como coração da comunidade e do território. Cabe ressaltar que esse espaço social também é permeado por conflitos inerentes a uma prática democrática que busca alicerçar-se nas lideranças, mas também constituir dinâmicas horizontalizadas. O alcance da cozinha como equipamento urbano de convergência social, portanto, depende tanto dos laços de sociabilidade, quanto da prática cotidiana de resolução de conflitos, que, ao fim, aprimoram sua existência e suas dinâmicas.

As cozinhas emergem como formas de resistência consolidadas por longas trajetórias políticas, o que lhes permitem estar profundamente territorializadas ou enraizadas em demandas locais e serem legitimadas por suas comunidades. A resistência das cozinhas também se expressa na própria pedagogicidade da sua vida social, ensinando modos de trabalhar e viver que, ao pautarem redes de sociabilidade e afetos, se contrapõem às ordens individualistas e exploratórias vigentes.

Este Sonário  é, portanto, um modo de ampliar e diversificar o fortalecimento das cozinhas como equipamentos urbanos, e visa ecoar vozes das vivências nestes territórios insurgentes, impulsionando e legitimando seus modos de convergir social e comunitariamente. Construída em constante e atento diálogo/escuta com os envolvidos essa plataforma  convoca a atenção para construção de processos de interação pautados no encontro de saberes, no respeito às diferenças, em modos solidários de fazer cidades e que permitem questionar os modelos de planejamento urbano alheios a um porvir urbano mais igualitário e comunitário.

As Cartografias

O mapeamento cartográfico busca evidenciar a incidência quantitativa e locacional das cozinhas em escala municipal. Para tanto, recorremos às informações inscritas no MDS (2023), onde constam cozinhas solidárias, populares e comunitárias, e ao levantamento de cozinhas emergentes com a enchente de 2004, ainda em andamento. A esse mapeamento são justapostos, inicialmente, dados territoriais referentes à renda, raça, acessibilidade-mobilidade, aspectos biofísicos, saneamento  básico, abastecimento de água, áreas de risco geológico, favelas e comunidades urbanas, hortas urbanas, áreas protegidas, assentamentos de agricultura familiar, imóveis vazios que não cumprem sua função social, entre outros. 

Entendemos que estas cartografias nos auxiliam a compreender situações de precariedade oriundas de políticas urbanas tecnicistas, racistas e segregadoras, evidentes principalmente nas margens urbanas, onde opera a maioria das cozinhas. Por margens urbanas entendemos a espacialização sobreposta de duas práticas: a do sistema-mundo moderno e capitalista que aciona a precarização e vulnerabilização de grandes contingentes populacionais urbanos; e a de organizações que subvertem os imperativos modernos de privatização da terra e da vida. Desse modo queremos ampliar reflexões sobre o fenômeno urbano das cozinhas, bem como denunciar a obsolescência das políticas urbanas vigentes em relação à justiça social e ambiental, e que deveriam pautar a organização das cidades sobretudo em cenários de catástrofe ambiental e sanitária.

Referências

BRANCO, Bruno. Cozinha Solidária: partilha de alimentos e vivências. MST. 29 jul 2020. Disponível em: https://mst.org.br/2020/07/29/cronica-cozinha-solidaria-partilha-de-alimentos-e-vivencias/

LANCHONETE. Cozinha Eco Afro Afetiva. n.d. Disponível em: https://www.lanchonetelanchonete.com/cozinha-eco-afro-afetiva  

SOUZA, André Ricardo.  Trabalho, solidariedade social e economia solidária. Lua Nova (93) • Dez 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ln/a/3jJ636jKqtVTs6KMq6dF99q/# 

REIS DA SILVA, A. T.; DORNELES, A. B. Pedagogias ecológicas e decoloniais em rede: o movimento CSA como comunidade de aprendizagem. Desenvolvimento e Meio Ambiente. Vol. 59, p. 399-417, jan./jun. 2022. DOI: 10.5380/dma.v59i0.75659 e-ISSN 2176-9109.RIZOLLO, Anelise; MADRUGA, Samanta Winck. COZINHAS SOLIDÁRIAS, FOME E COMIDA Intersecções do comer em sociedade. Diplomatique.  14 de dezembro de 2022. Disponível em: https://diplomatique.org.br/interseccoes-do-comer-em-sociedade/