Cartografias

Nosso mapeamento cartográfico busca evidenciar a incidência quantitativa e locacional das cozinhas em escala municipal. Para tanto, recorremos às informações inscritas no Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social (2023), onde constam cozinhas solidárias, populares e comunitárias, e ao levantamento de cozinhas emergentes com a enchente de 2024, ainda em andamento.

A esse mapeamento são justapostos, inicialmente, dados territoriais referentes à renda, raça, acessibilidade-mobilidade, aspectos biofísicos, saneamento  básico, abastecimento de água, áreas de risco geológico, favelas e comunidades urbanas, hortas urbanas, áreas protegidas, assentamentos de agricultura familiar, imóveis vazios que não cumprem sua função social, entre outros. 

Entendemos que estas cartografias nos auxiliam a compreender situações de precariedade oriundas de políticas urbanas tecnicistas, racistas e segregadoras, evidentes principalmente nas margens urbanas, onde opera a maioria das cozinhas. Por margens urbanas entendemos a espacialização sobreposta de duas práticas: a do sistema-mundo moderno e capitalista que aciona a precarização e vulnerabilização de grandes contingentes populacionais urbanos; e a de organizações que subvertem os imperativos modernos de privatização da terra e da vida.

Desse modo, queremos ampliar reflexões sobre o fenômeno urbano das cozinhas, bem como denunciar a obsolescência das políticas urbanas vigentes em relação à justiça social e ambiental, e que deveriam pautar a organização das cidades sobretudo em cenários de catástrofe ambiental e sanitária.

Fonte: Acervo Margem_lab e Encruzilhada, maio de 2024.

Desde a cartografia que relaciona as cozinhas aos diferentes estratos de renda (IBGE 2012, 2023), observamos que a leste, centro e sul do município a incidência das cozinhas aparece majoritariamente em bairros de baixa renda, os quais frequentemente ocupam áreas de borda ou topo de morro com pouco acesso a infraestruturas urbanas, serviços, equipamentos e moradia digna. Observamos também a incidência das cozinhas em bairros mais centrais e consolidados em termos de infraestrutura urbana, lugares que concentram boa parte da população de rua desatendida em todos os aspectos da vida social e urbana, além de ocupações urbanas em imóveis que não cumprem sua função social.

Fonte: Acervo Margem_lab e Encruzilhada, maio de 2024.

A sobreposição dos dados das cozinhas aos dados de raça (IBGE, 2012, 2023) evidencia que a concentração das cozinhas coincide com as áreas de maior concentração de pessoas negras, como à leste  e à oeste. À sul, destaca-se a Restinga resultado de uma das maiores remoções urbanas do centro para as margens da cidade durante os anos 1970, com forte recorte racial.

O seu centro, apesar de ser habitado principalmente por pessoas brancas, preserva quilombos urbanos que remetem aos territórios negros do século XIX. Nos territórios majoritariamente ocupados pela negritude, também se concentram a falta de infraestrutura urbana e o policiamento intensivo, o que revela um forte retrato das desigualdades sociais e do racismo estrutural das políticas urbanas e sugere a emergência das cozinhas como um movimento de resistência a isso.

Fonte: Acervo Margem_lab e Encruzilhada, junho de 2024.

Em relação à mobilidade e acessibilidade, observamos que o sistema viário radial da cidade privilegia os territórios mais centrais, onde também se concentra a maior parte das estações e terminais. Majoritariamente nas periferias, as cozinhas buscam se beneficiar da proximidade das poucas redes viárias estruturantes dessas regiões, sobretudo a leste e sul, driblando a dependência do sistema de mobilidade estruturado a partir do centro histórico, e garantindo o acesso físico, a circulação de capital humano e de informações e a distribuição de alimentos, fundamentais para o funcionamento das cozinhas como centralidades e espaços de convergência social.

Essa estratégia, contudo, não é suficiente para garantir o acesso quando o sistema de transporte público falha/paralisa, ou quando ele retoma uma normalidade artificial com alterações de tarifas, itinerários, horários, o que evidencia a necessidade de reconhecer as cozinhas como equipamento urbano a ser atendido pelas ações de planejamento voltadas para mobilidade e acessibilidade.

Fonte: Acervo Margem_lab e Encruzilhada, maio de 2024.

Em relação ao saneamento básico, observamos que o sistema de tratamento de esgotos em Porto Alegre evidencia grandes áreas desassistidas, com destaque para o leste e sul da cidade. À leste é possível reconhecer nucleações de cozinhas situadas em áreas que vão de 5% a 20% com esgoto a céu aberto, grande parte em áreas de morro ou encosta, além de próximas aos pequenos arroios urbanos. No extremo sul em áreas de morro e/ou próximas à orla do Lago Guaíba se evidenciam índices ainda mais preocupantes, as vezes superiores a 30% do território com esgoto à céu aberto. A grande concentração de cozinhas na área centro-sul tem nível deficiente de saneamento e coincide também com a presença dos arroios.

Defender o direito das cozinhas e de seus territórios ao saneamento básico é atender direitos humanos reconhecidos pelas Nações Unidas e pela Constituição Federal, uma vez que o esgoto a céu aberto impacta fortemente a saúde pública, a moradia e a preservação do meio ambiente. São imperativas políticas públicas que qualifiquem o saneamento básico em áreas desassistidas a fim de dar sustentação social e ambiental aos territórios e consequentemente às cozinhas como equipamentos urbanos de combate à fome e promoção da saúde das comunidades.

Fonte: Acervo Margem_lab e Encruzilhada, maio de 2024.

Conforme já observado na cartografia sobre a distribuição de renda, há uma coincidência de cozinhas e áreas de vulnerabilidade social e econômica. Nesta cartografia, observamos que  maiores nucleações de cozinhas emergem justamente em áreas de favelas e comunidades urbanas e vilas do Demhab, reforçando sua importância na garantia de alimentação saudável à população mais desassistida pelo Estado. As cores amarelo e vermelho no mapa representam áreas de médio e alto risco geológico respectivamente, o que configura o racismo ambiental ao qual estão expostas estas comunidades, cotidianamente ameaçadas por desmoronamentos sobretudo em época de chuvas violentas como as que atravessamos em maio de 2024.

Para efetivação das cozinhas como equipamento urbano de combate à fome e promoção da saúde, é fundamental que o terreno onde se assenta seja seguro e com as devidas condições ambientais, necessitando portanto de políticas urbanas voltadas à contenção e remediação de riscos cada vez mais acentuados com a crise ambiental em curso. 

Fonte: Acervo Margem_lab e Encruzilhada, maio de 2024.

Nesta cartografia buscamos acionar possíveis relações locacionais entre as cozinhas, as hortas urbanas e assentamentos de agricultura familiar. Seja com atuação social, econômica e/ou ecológica as hortas urbanas estão presentes em diversos territórios, com destaque para as áreas centro e centro-sul próximas à orla em áreas mais planas, para zona leste junto a topografias mais acidentadas e uma concentração ao sul situada na Restinga. Observamos que a incidência territorial das cozinhas está relacionada a estas mesmas áreas, demonstrando grande potencial de articulação em termos de políticas públicas voltadas à soberania alimentar.

Nesta cartografia buscamos acionar possíveis relações locacionais entre as cozinhas, as hortas urbanas e assentamentos de agricultura familiar. Seja com atuação social, econômica e/ou ecológica as hortas urbanas estão presentes em diversos territórios, com destaque para as áreas centro e centro-sul próximas à orla em áreas mais planas, para zona leste junto a topografias mais acidentadas e uma concentração ao sul situada na Restinga. Observamos que a incidência territorial das cozinhas está relacionada a estas mesmas áreas, demonstrando grande potencial de articulação em termos de políticas públicas voltadas à soberania alimentar.

Observamos também que a presença da agricultura familiar na RMPA foi fortemente afetada pelas enchentes de maio de 2024, e que não coincidem com as áreas rurais (de acordo com PDDUA) que poderiam fortalecer a rede de produção de alimentos saudáveis. Por sustentarem valores similares e pela natural oferta de insumos, hortas e cozinhas compõem uma potente rede na luta pela soberania alimentar e que interpela os modos vigentes de produção, distribuição e consumo de alimentos.

Fonte: Acervo Margem_lab e Encruzilhada, maio de 2024.

Nessa cartografia, relacionamos a localização das cozinhas com imóveis públicos desocupados que não cumprem a sua função social e que, além de acolher o déficit de moradia, poderiam comportar as cozinhas como equipamentos públicos. Observamos que esses imóveis são ausentes apenas no extremo sul de Porto Alegre, estando diluídos em grande parte da cidade e concentrados especialmente em três regiões: centro histórico; norte e centro-leste.

No centro histórico, ocorre a maior concentração desses imóveis, desde onde um número relevante de cozinhas também aí localizadas ou localizadas em bairros próximos poderiam se consolidar. Ao norte e sudeste (na Restinga), percebemos outras nucleações de cozinhas coincidentes com ocorrência de imóveis com essas características.  Complementar a isso, uma série de imóveis dispersos a centro-oeste também estão próximos a cozinhas estabelecidas.

Entendemos que a reabilitação desse parque edificado público e ocioso é uma atitude ética a ser amparada por políticas públicas que buscam o bem-estar social para grupos vulnerabilizados social e ambientalmente. Naturalmente, em cada caso seria necessária uma análise aprofundada para avaliar características e condições de acesso desses imóveis; porém desde já vislumbramos que essa seria uma oportunidade e alternativa para se efetivar cozinhas com baixos investimentos e rápida operacionalização.